AGENCY

Introdução

Esta entrada de dicionário versa sobre o conceito de agency. Ela recupera e sistematiza o debate teórico que esse termo mobiliza quando traduzido para o contexto francês, que contribui na reflexão de sua tradução para o português do Brasil. Esse trabalho de tradução, tal qual empregamos aqui, explora prioritariamente o caráter polissêmico e amplia as reflexões conceituais que o termo produz. Para tal, começamos expondo as dificuldades que essa transferência entre línguas e contextos implica e como ela enriquece seu debate conceitual.  Em seguida, a partir de um exemplo do cotidiano, tirado da ficção, veremos como o termo agency pode se desdobrar em práticas que parecem contraditórias, suscitando novas perspectivas. Propomos então a utilização da expresssão “margem de manobra” como uma tradução privilegiada, mas não definitiva, para dar conta de sua complexidade e transpor a oposição entre resistência e submissão. As reflexões que culminam nesse texto foram produzidas durante os debates no âmbito do Grupo de trabalho agency, do qual participamos, que ocorreu durante a reunião da Rede Internacional de Pesquisas sobre Gênero (International Research Network World Gender – IRN World Gender)[1], em Barcelona, nos dias 6, 7 e 8 de novembro de 2019.

Quais termos para traduzir agency?

Tendo aparecido na língua inglesa no século XVII (Balibar & Laugier, 2019), a palavra agency deriva du latin agentia, cujo sentido se inscreve no grupo léxico do verbo agere (Zaharijevic, 2018). Sem equivalente simples no idioma, agency tem sido diversamente traduzido na língua francesa. Algumas dessas possibilidades foram apresentadas por Charlotte Nordmann e Jérôme Vidal (2004) numa nota do·as tradutore·as presente na versão francófona do livro de Judith Butler Le pouvoir des mots (Excitable speech): “Como traduzir agency? Devemos falar em termos de agência, de agir, de potência, de autonomia, de efetividade, de capacidade, de capacidade de agir, de potência de agir, de agenciamento ou de agentividade?” (p. 14, tradução nossa)[2]

Diferentes proposições de tradução costumam aparecer quando a obra de autoras e autores anglo-saxões são recepcionadas em contexto francófono, o que não foi diferente com a chegada das primeiras obras da autora estadunidense Judith Butler na França. Apesar de se tratar de uma língua diferente, essas proposições nos dão indícios importantes para a tradução de agency em português no Brasil. Por exemplo, com o acordo de Butler, Cynthia Kraus (2006) escolheu “capacidade de agir” (“capacité d’agir”) para sua tradução de Trouble dans le Genre (Gender Trouble). Kraus relembra que agency em inglês articula nossa margem de manobra face ao poder, que o termo pode denotar tanto da capacidade para a ação como ação em si mesma. Por outro lado, Nordmann e Vidal (2004), em sua nota do·as tradutore·as, valorizam o sentido spinozista que implica o termo “potência de agir” (“puissance d’agir”, que vem de “potentia agendi”) e julgam essa tradução adequada, pois evoca, como agency em inglês, o que exerce uma forma ativa de poder, ou seja, a força motora em uma ação.

          No Brasil, também sem equivalente simples em português, agency é frequentemente traduzido por “agência, principalmente em publicações que se inscrevem no campo da teoria feminista. É o caso, por exemplo, das produções incontornáveis de Adriana Piscitelli (2013), sobre brasileiras cuja “agência” se exprime na experiência da migração para o exercício do trabalho do sexo, ou de Lia Zanotta Machado (2014), que destaca como o desenvolvimento dos estudos de gênero contribuiu amplamente para a “agência” das mulheres e o fortalecimento dos movimentos feministas pelos direitos sexuais e reprodutivos. Essas autoras compreendem agência como potência, apreensão que faz eco ao trabalho da autora Judith Butler, mencionada acima. Contudo, do nosso ponto de vista, essas autoras vão rápido demais de um ponto ao outro (agency na língua inglesa e agência na língua portuguesa) e perdem a oportunidade de desenvolver uma discussão sobre o termo e suas diferenças semânticas e teóricas nessa transferência linguística.

Desse modo, “agência” tem sido utilizada no contexto brasileiro como uma tradução direta do conceito de agency. Uma tradução que ocorre geralmente sem um debate que considere as variabilidades que o termo adquire na língua e no contexto brasileiro. Nosso texto é uma resposta a essa lacuna. A similaridade com o léxico neoliberal – quando nomeia com esse termo repartições públicas (agência dos correios), filial de banco (agência bancária) ou empresa comercial (agência de viagens, de imóveis, etc.) – nos incitou a buscar alternativas em língua portuguesa que se aproximam dos sentidos que o conceito produz no seu idioma de partida e na teoria feminista, ou seja, de uma semântica da ação.

Para o nosso português, como propõe Adriana Zaharijevic (2018) para as línguas de raiz latina, podemos seguir a trilha do verbo agere, do latim, que se desdobra num léxico amplamente constitutivo de todo um campo semântico da ação. É o caso de fazer, agir, operar, dirigir, produzir efeito, etc.[3] Assim, a expressão capacidade de agir (que vem de capacité d’agir, uma das traduções em francês para agency) nos parece colocar em prática um vocabulário de fato dinâmico e próximo da semântica da ação que evoca agency. Correspondência que pode ser igualmente verificada no uso de expressões tais que “possibilidade de agir”, “condições de agir”, “potência de agir”. Todavia, tais expressões podem deixar escapar nuances importantes que encontramos no termo “margem de manobra”, tradução que privilegiamos em nosso texto.

Colocando agency em cena

Como visualizar agency a fim de melhor apreender seu(s) sentido(s)? O termo agency pode ser empregado apenas para nomear ações que subvertem ou transformam as normas? Se é esse o caso, então porque não continuar a utilizar o termo “resistência” e seus sinônimos? Se agency quer dizer resistência, então qual a utilidade de uma nova palavra, como “agência”, para falar nos mesmos termos?

Insatisfeito·as com tais simplificações, e para explorar as diferentes práticas nas quais se desdobram agency, buscamos nos apoiar em cenas do cotidiano, quer elas sejam vistas na “realidade” ou na ficção. Pois, a ficção, rica em representações, pode ser uma aliada das nossas reflexões sobre o cotidiano. Assim, de encontro à um certo consenso que tende a assimilar a noção de agency à ação (Emirbayer & Mische 1998), em sua versão ativa e antagonista à passividade, escolhemos um exemplo que permite vislumbras outras facetas desse conceito.

O filme Moonlight, dirigido por Barry Jenkins e lançado em 2016, coloca em cena duas maneiras diferentes de reagir à violência por identidade de gênero e/ou orientação sexual, também nomeada de homofobia ou LGBTfobia. Para recordar, transcrevemos um trecho de sua sinopse abaixo:

Chiron, um homem negro de Miami luta contra seu ambiente escolar e sua família para viver sua homossexualidade. Criança, ele é regularmente martirizado pelas outras crianças de sua idade. Um único menino lhe oferece um contato amigável, Kevin. Adolescente, Chiron é o alvo de um grupo de estudantes de sua escola. Ele baixa a cabeça e se submete. Uma noite, depois de vagar sozinho, ele se encontra só numa praia, sem nada esperar. Aparece Kevin. Eles se beijam.

No filme, é o personagem coadjuvante que nos chama mais atenção, Kevin, e não Chiron, protagonista no enredo. Tanto Kevin como Chiron exercem práticas homoeróticas. Porém, diferente de Chiron, Kevin cria estratégias que o permitem de escapar aos insultos e agressões homofóbicas. Embora Chiron seja o alvo de um grupo de garotos de sua escola, Kevin busca dissimular uma masculinidade que torna invisível sua suposta homossexualidade. Fazendo-se confundir no meio deles, Kevin chega mesmo a integrar o grupo de garotos que assedia Chiron. Como resultado, ele não é nem insultado, nem agredido. Ele continuará, entretanto, “no armário”. Durante um longo período do filme, observamos Chiron numa posição defensiva vis-à-vis das agressões. Uma ruptura nessa narrativa é observada no momento em que Chiron reage e atinge violentamente um dos garotos do grupo com uma cadeira. Chiron exerce mais agency que Kevin? Pensamos que não.

            O enfrentamento às normas se expressa em nuances e, se pensamos além da polarização simplista dominação/resistência, podemos vislumbrar que diferentes práticas, embora percebidas como contraditórias, podem expressar agency. Preferimos, então, pensar agency como uma forma de negociação constante. Um campo de forças no âmbito da qual podemos nos reorganizar e produzir modos diferentes de se governar (Foucault, 2014), o que é diferente da noção tradicional de liberdade e resistência. É como jogar com as regras, não segundo elas, nem exclusivamente no seu enfrentamento.

Tal compreensão da noção de agency se situa na linha dos trabalhos de Saba Mahmood e Lila Abu-Lughod, que criticam os pressupostos e omissões que implicam pensar o conceito unicamente em termos de resistência. Em Veiled sentiments (1986), Lila Abu-Lughod formula essa contestação: pesquisas passadas, incluindo as dela, têm se preocupado demais em valorizar e encontrar resistências, negligenciando ao mesmo tempo a explicação dos mecanismos de poder.

Do nosso ponto de vista, o termo “margem de manobra” ecoa essa ideia, que não se limita a ações ou práticas que se opõem visivelmente às normas, mas também inclui formas produtivas de habitá-las, como aponta a antropóloga Saba Mahmood em Politics of Piety (2005). Essa autora denuncia uma tendência na teoria feminista, e nos estudos de gênero, de naturalizar um desejo humano de liberdade ou de autonomia – uma tendência que faz parte do legado do pensamento iluminista (com a ilusão do sujeito racional, autocontrolado e transcendente) e da tradição liberal particularmente (Mahmood, 2005).

Agency como margem de manobra

Os desafios que lançamos nesse breve texto aos sentidos estáticos que são atribuídos ao conceito de agency, que correm o risco de ser reproduzidos mecanicamente na sua tradução como agência, nos encorajaram a buscar formas de traduzi-lo em termos plurais e contextuais. Assim, pareceu-nos relevante investir na expressão “margem de manobra” como alternativa terminológica, que nos permite superar a oposição binária e simplista entre agência/estrutura ou submissão/resistência, na tradução do conceito de agency em português.

Inclusive, a riqueza semântica da expressão pode ser percebida na análise fina das palavras que a compõem. Em primeiro lugar, “margem” nos conduz a pensar em termos de flexibilidade, de maleabilidade. Por outro lado, ter uma margem não é o mesmo que não ter limites. Trata-se muito mais de um dégradé não homogêneo, em diferentes saturações. Ao falarmos de “margem” (de manobra, de negociação, etc.), falaremos sempre de possibilidades: jamais a impossibilidade ou a total liberdade. A palavra “margem” nos possibilita assim escapar aos polos. Em segundo lugar, o termo “manobra” recupera o vocabulário da ação, tão caro ao conceito de agency. Uma manobra implica movimento. Não podemos falar de “manobra” sem um mínimo de mobilidade, ou seja, poder (se) mover ou (se) deslocar. O sintagma “margem de manobra” nos permite assim falar sobre a possibilidade de ação num espetro de diferentes dimensões (mesmo que seja ínfima, nunca será nula).

Assim, a tradução de agency como margem de manobra corrobora para a superação de binarismos simplificadores et nos permite pensar tal conceito como um híbrido de subversão e adaptação, onde podem ser produzidas zonas de liberdade.

Para citar este artigo:

Caseau, Anne-Cécile; Paz, Diego: «Agency». Dictionnaire du genre en traduction / Dictionary of Gender in Translation / Diccionario del género en traducción. ISSN: 2967-3623. Mis en ligne le 12 mai 2022: https://worldgender.cnrs.fr/en/entries/agency/

Referências Bibliográficas

Abu-Lughod, Lila (1986), Veiled Sentiments: honor and poetry in a Bedouin society, University California Press, Berkeley.

Balibar, Etienne & Laugier, Sandra (2019), “Agency ”, in Barbara Cassin (ed.), Vocabulaire européen des philosophies : Dictionnaire des intraduisibles, Le Robert et Seuil, Paris, p. 26-32.

Emirbayer, Mustafa & Mische, Ann (1998), “What Is Agency?”, American Journal of Sociology, vol.103, n° 4, p. 962‑1023.

Kraus, Cynthia (2006), “Note sur la traduction”,  in Judith Butler, Trouble dans le genre : Le féminisme et la subversion de l’identité, La Découverte, Paris, p. 21-24.

Foucault, Michel (2014), “La gouvernementalité”, in Defert Daniel & Ewald François (eds.), Dits et écrits 1954 – 1988, III, 1976-1979, Gallimard, Paris, p. 240-256

Mahmood, Saba (2009). Politique de la piété. Le féminisme à l’épreuve du renouveau islamique (N. Marzouki, Trad.). La Découverte, Paris.

Nordmann, Charlotte & Vidal Jérôme (2017), “Avertissement des traducteurs”, in Judith Butler, Le pouvoir des mots : Discours de haine et politique du performatif, Éditions Amsterdam, Paris, p. 12-19

Piscitelli, Adriana (2013). Trânsitos: Brasileiros Nos Mercados Transnacionais do Sexo, EDUERF, Rio de Janeiro.

Zaharijevic, Adriana (2018), “La traduzione politicamente impegnata della filosofia : Il caso del termine agency”,  in Irena Fiket, Sasa Hrnjez & Davide Scalmani (eds.), Culture in traduzione : Un paradigma per l’Europa / Cultures in Translation : A Paradigm for Europe, Mimesis International, Milan, p. 113-127

Machado, Lia Zanotta (2014). “Interfaces e deslocamentos: feminismos, direitos, sexualidades e antropologia”. Cadernos Pagu, n° 4, p. 13‑46.


[1] Esse evento foi co-organizado pelos grupos de pesquisa Recerca Teoria, Gènere i Sexualitat (ADHUC, Universitat de Barcelona) e Laboratoire d’Études de Genre et de Sexualité (LEGS, CNRS – Université Paris VIII – Paris Nanterre).

[2] No original: “Comment traduire « agency » ? Faut-il parler d’« agence », d’agir, de puissance, d’autonomie, d’effectivité, de capacité, de capacité d’agir, de puissance d’agir, d’ « agencéité » ou d’ « agentivité »?”.  

[3] Ver: https://pt.glosbe.com/la/pt/agere


ÉTIQUETTES

Agency, capacidad de agir, Margem de manobra